Minha Criação

Mas faltava algo. Faltava algo que se parecesse comigo. Eu o criaria, mas tinha que ser diferente. A todo o resto eu ordenei “Faça-se”, mas não agora. Eu convoquei os que sempre estiveram comigo e disse a eles “Façamos!”. Era diferente. Nós fizemos. Desde a matéria prima, pois eu pessoalmente a peguei com minhas mãos, as mesmas mãos que a moldaram. Meticulosamente eu o formei. Por fim, segurei com cuidado e alegria pelo que ele faria sobre tudo o que já estava lá. Olhei para aqueles olhos recém-esboçados que expressariam em suas devidas proporções o que os meus expressam. E eu soprei. Com todo o amor que poderia ser sentido, com toda sorte de bênçãos que poderia existir, com todo ardor que aquele pedaço da Terra poderia suportar eu soprei em suas narinas. A vida passou a circular em suas veias. A minha vida.
Eu fui zeloso para com ele. Dei então uma companheira que o ajudasse. Eu a modelei com cuidado também. Dei a ele tudo o que era necessário para a sobrevivência. Dei alimento, dei tarefas, dei a Terra! Eu disse para que ele a povoasse, que se multiplicassem lá. Era seu lar. Seu lar que eu preparei e cuidei até que fosse dado a ele.
Também ia visita-lo todos os dias. Permitia que ele ouvisse o som do céu e cantasse junto a mim. Nós conversávamos e eu lhe contava todos os segredos que pudesse ouvir sobre tudo o que havia sido criado. Ele tinha livre acesso a mim e ao meu coração. Era agradável para mim estar lá, com tudo que havia feito existir e com aquele a quem fizemos conforme nossa imagem e semelhança. Garanto que você ainda não conhece a plenitude de tal perfeição. Eles eram para mim, e eu era deles. Eu era para eles Pai, e eles eram para mim filhos. Eu era para eles Criador, e eles eram para mim Criação. Eu era a Perfeição, e eles a minha imagem. Eu era para eles Deus, e eles eram totalmente meus.
Para tudo lhes dei permissão. Mas a perfeição deixou de lhes ser suficiente. Quiseram também aquilo que eu havia restringido. Era só aquilo. Só uma árvore, só um fruto. Quantas árvores e frutos saborosos e agradáveis lhes eram acessíveis. Minha ordem teve menos valor do que o discurso que foi feito pela serpente. O que ela dizia foi mais atrativo do que o que eu dizia. Não perceberam que ela lhes conduziu ao mesmo erro que a fez cair. Só um fruto lhes neguei...
Aquele que era a minha imagem a deixou entrar ali. Lhe encubi a tarefa de guardar aquele lugar. Deixou que um animal o persuadisse. Coloquei todos os animais abaixo dele mas ele não a ordenou que calasse. Entenda o que ela o fez almejar, entenda do que ela o convenceu. Que pai não perdoaria a desobediência? Mas ele foi além. Ele não me queria mais. Esse foi o erro. Como ser pai de alguém que não quer ser filho? Ele quis ser igual a mim para que não dependesse mais da minha proteção. Quis isso para que pudesse tomar posse por si ao invés de receber pelas minhas mãos. Ele não quis mais ser meu.
E mesmo assim, mesmo sabendo da vergonha que agora havia os contaminado eu fui encontra-los. No mesmo lugar e no mesmo horário de sempre. Conversávamos todo dia, portanto, poderíamos conversar também sobre tudo o que acontecera por conta das palavras da serpente. Era isso que fazíamos: conversávamos. Mas não naquele dia. Naquele dia estava tudo diferente. Os céus pareciam mais escuros, a vegetação já não era mais tão verde e as águas estavam agitadas. Tudo havia mudado, inclusive eles. Eles não queriam me ver. Eles se esconderam. E eu os chamei. Os procurei por todo aquele lugar que já não era como no dia anterior. Cantava os seus nomes ao chama-los, como sempre fiz. E eles não vieram a mim como sempre vinham. Mas pode a criatura se esconder do Criador, que antes de tudo já sabe inclusive seus pensamentos? Antes mesmo de encontra-los sabia de sua vergonha. Mas ainda assim eu lhes perguntei o que havia acontecido. Podiam ter conversado comigo. Nem a própria culpa quiseram assumir diante do estrago causado. Com certeza não foi para isso que os criei.
Ainda assim, diante de tudo, eu cobri o que os envergonhava. E para isso precisei derramar sangue, um sangue que nada tinha de culpa. Sangue inocente derramado pelo erro. Então eu os tirei dali. O lugar o qual os havia dado de presente. Precisei tira-los dali e guarda-lo de novo. O lugar de deleite no qual todos os dias cantava com a minha criação já não podia mais ser habitado por ela. Eles se corromperam e, com isso, corromperam tudo que eu os havia dado. Mas tenho ainda tudo guardado e vigiado. Um dia, aquele lugar voltará a exercer sua função original. Um dia, minha criação outra vez cantará junto a mim naquele lugar.
Homem. Minha imagem. Minha semelhança. No lugar perfeito o coloquei. Conheceu tudo que havia de mais santo. Me conheceu. Me viu. Preferiu viver sem mim. Preferiu ser igual a mim e não depender de mim. E seus descendentes insistem no mesmo tropeço. Toda autossuficiência, todo desejo de grandeza mesmo sabendo que nada há em cima ou embaixo que poderia se igualar a mim. Nada do que foi prometido se equipara ao prazer que havia em estar comigo naquele lugar, o lugar que eu dei a ele. Nada pode me substituir. Eu os criei para mim. Quando vai lembrar-se, minha criação, que eu sou suficiente para você?
Porquanto em parte conhecemos e em parte profetizamos; quando, no entanto, chegar o que é perfeito, o que é imperfeito será extinto.
1 Corintios 13:9-10
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Que lindo texto!!!! Parabéns!!! É necessário mais vidas assim que se dediquem a escrita, não apenas a escrita comum a escrita que edifica. Obrigada por me edificar!
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